
O chão amanhece cheio de pequenas pedras, assimétricas, irregulares, quase aplainadas. Assim como se flutuassem. Pedras que são todas elas ouvidos, são todas elas mudas. Pedras maceradas, pisadas. Como tapetes desenrolados entre as casas que vivem espiando os transeuntes. As pedras, mesmo intimadas, não falam. Porque são todas elas ouvidos, são todas elas mudas.
O dia e a noite surgem cheios de pernas. Como se percorressem passarelas. Cheios de solas e de tacões. O coração pergunta para onde vão tantas pernas. Pernas que seguem como o sangue quente nas artérias. Será por isso que chamamos às ruas artérias? Há ruas dentro de nós. Há artérias pulsando nas cidades. Temos de cuidar delas. Elas pertencem-nos. As nossas artérias, as nossas ruas. Há quem venha à noite varrê-las, desenhando esquiços de Gaudí, que deixámos de ver. Muito por termos feito da rua apenas chão. Porque quando vemos com os pés, passamos a olhar mais as folhas tombadas do que as que cintilam nos dedos das árvores.
A rua tem, para mim, um significado imagético que me transporta à Baixa de Coimbra. Como se procurasse no dicionário a palavra e, correspondendo-lhe, uma imagem aparecesse sob a forma de descrição. Encontramos, atualmente, na sua toponímia, as ruas dos Oleiros, da Louça, da Moeda, das Padeiras, dos Sapateiros, entre várias outras, em zonas onde outrora se concentraram estas profissões. São conhecidos, através dos antigos registos da sisa, os vários ofícios que ali existiram.
Penso em como seria profícuo um centro interpretativo, uma mostra das profissões florescidas nestas ruas, capaz de valorizar a história colocada ao serviço da cultura, convertendo-a numa mais-valia ao comércio, aos residentes, ao turismo, a todos os agentes culturais. Até porque continuo a ver nela a iminência de produzir, simultaneamente, resultados para o porta-moedas de quem lá trabalha e qualidade para quem lá vive – aquilo a que gostamos de chamar “economia local”. Mas para isso é preciso ousar o sonho que desencadeie a revitalização de uma certa babel difusa que vem afastando o comércio e as pessoas.
Quando vislumbramos vazias as ruas, ante os melancólicos despojos de cadências desertas, sentimo-las como aquarelas tristes, onde soçobram esqueletos de cimento com janelas entaipadas, enegrecidas onde antes existia cor, despidas de ornamentos, magras, esquálidas e tristes. Os rostos vão deixando de lhe pertencer. E as pedras formam crateras vazias, onde antes havia rimas.