Era de madrugada. A noite havia ficado entupida no leito do quarto, sem vontade de sumir. Contou as paredes, e nelas as sombras. Contou o barulho dos carros pisando a tampa metálica na estrada. O tempo horizontal custa a passar. O relógio marca devagaradamente o seu silêncio. Não se atrapalha, não prescinde de si mesmo nem de cada parte sua. Não apressa os ponteiros. Quando o tempo bate certo no espaço errado, algo em nós desacontece.
O que está a ocorrer para que as pessoas tenham cada vez mais dificuldade em separar o dia da noite, modificando, como diz a cronobiologia, os seus ritmos biológicos? Evoluímos com o claro e o escuro, o momento de dormir e o momento de estar acordado. Mas hoje, com todas as invenções e possibilidades, aprisionamo-nos no tempo. O dia e a noite são iguais. Para podermos descansar, passámos a comprar o sono na farmácia, pois o sono também vem em caixas.
O tempo está a modificar-se. Ele passa constante, mas os nossos olhos, em vertigem, procuram ocultá-lo. A sociedade de consumo persuade-nos caprichosamente com os seus convencimentos de que precisamos de gastar, adquirir, comprar: o novo telemóvel, o creme para as rugas que esconde o tempo que vivemos. Não haveria mal nisso, se não fosse o facto de nos termos enfiado num gueto virtual onde a vida passa irrepetivelmente por nós.
Que tipo de solidão é esta? Estamos com os nossos telefones, interagindo num mundo compartilhado no ecrã, aderindo a um tempo e a um espaço globais, mas efetivamente separados uns dos outros. Tão juntos e tão sozinhos. E nunca foi tão comum dizer: “não tenho tempo”.
A ideia de que não temos tempo radica na conceção do tempo produtivo, que tem um caráter capitalista. Quando trabalhamos a troco de um salário, vendemos o nosso tempo. Sabemos que assim é, mas não questionamos o modelo, porque ele “normalizou-se” e é difícil sobrevivermos de outra forma. O tempo da sociedade não está feito para pensar, mas para esta criar coisas concretas, para ser produtiva no sentido económico.
O tempo que passamos fora do tempo produtivo, o “tempo livre”, é o tempo que as pessoas passam fora do seu trabalho e possam empreender familiarmente na reprodução da própria classe, tendo filhos, para que estes um dia sejam trabalhadores e ajudem a estrutura de pensões a pagar a sociedade dita improdutiva. É assim que pensam os sistemas políticos.
Nesta ótica, se o mundo chegou aos oito mil milhões de habitantes, e se a Europa está em declínio demográfico, significa que a Ásia, que tem o maior sistema económico do planeta, deveria estar a reproduzir-se para manter o capitalismo no seu vigor florescente. Se observarmos, está mesmo. A Europa tem 7% da população mundial face aos 55% da Ásia – mais de metade das pessoas do mundo vivem onde existem as mais altas taxas de produção.
Por outro lado, de que forma temos usado o nosso tempo livre? Na maior parte das vezes… a produzir. Por exemplo, quando colocamos algo no FB, no Instagram, no Youtube ou no Twitter, não ganhamos nada com isso. Estamos a dar de graça conteúdo que enriquece a marca e os seus donos. E esta é uma nova variante do capitalismo: cedemos livre e gratuitamente tempo e conteúdo para enriquecer os donos destas empresas, em troca de uma existência virtual.
Ainda que o nosso tempo se tenha convertido numa conta-poupança em débito constante, precisamos mesmo de dar um tempo…