A tarde baloiça no seu manto tórrido, deixando que a luz escorra pelo casario. Os gestos, o movimento, os pés, muitos pés, formam caminhos. A Praça do Comércio, cinzelada entre duas antigas igrejas, desapodreceu. Quando os pés andam, o caminho renasce. A Feira do Livro de Coimbra foi a chave que abriu o portão de chumbo que existia naquela embocadura da Baixa. Os transeuntes pararam. Os amantes de livros pararam. As janelas abriram-se. Os moradores vieram à varanda. Mostraram as suas toalhas de devoção à Rainha Santa Isabel. Os cafés montaram esplanadas. O tédio desaconteceu, encolheu-se, foi-se embora.
Contra todas as expectativas, mesmo as mais compassivas, a Feira do Livro de Coimbra está a ser um sucesso. Quem vinha com as unhas à mostra escondeu as mãos nos bolsos. Mordeu as palavras. Murmurou rugidos, miados, desesperanças, desgostos coléricos. O livro afinal tem seguidores, embora não receba likes nem partilhas. Folheia-se. Folheia-nos. Enche-nos de palavras, de palavras, de palavras…
As editoras e os livreiros fazem boa cara às vendas. Estes dias foram bons para a caixa. Fui perguntando. Foram-me dizendo. “Corre bem, felizmente. Muito melhor que antes”. Esta feira fez esquecer o formato anterior, que juntava o livro, o artesanato e os comes-e-bebes. O comprador gastava o dinheiro no naperon, no bibelô, nos panos rendados. Faltava-lhe depois para o livro. As barracas chegavam cheias, partiam cheias. Cheias do mesmo.
Era preciso isto. Era preciso fazer esquecer as estantes murchas, os livros velando a dança das moscas. Como os olhares entristonhados dos cachorros do canil que veem sair os visitantes de mãos vazias. Os livros procuram sempre novo senhorio. Não são escravos do seu dono. São livres. Querem partir nas afeições de outras mãos, de outros olhos, de outros compassos. Gostam de carícias na capa, de beliscões nas páginas.
A tarde macia escorrega na praça. Estende-se pela calçada. Os autores reencontram-se com o público. As cadeiras reclamam tal como a porta giratória por onde tanta gente passa. A música, que também traz poesia, entra-nos pelos ouvidos, embala-nos, convida-nos. Fala-nos do livro e da sensação de o querer.
Um sucesso como este deve ser assinalado, porque é Coimbra no seu orgulho. Os colaboradores do Município, os seus competentíssimos técnicos, têm de ser reconhecidos pela cidade. Mostraram-se no seu melhor, com motivação e proficiência. Afinal Coimbra tem os melhores! Respira-se um ar tranquilo, seguro, convidativo. E isso é bom, é muito bom. O que se espera de uma feira do livro é que apresente as novidades, que possibilite um diálogo entre os autores e os seus leitores, que estimule a discussão, que nos interpele com desafios, que chame gente a um espaço convidativo, que celebre o livro e a literatura. Por tudo isto, Coimbra está de parabéns. Fez serviço público de qualidade.