Estação de Coimbra-B. Outono de 2019. O altifalante anunciava, em tom perfurado, o atraso do intercidades com destino a Lisboa. Os semblantes bocejaram a contrariedade. Malas pousadas no chão, o quiosque cercou-se de mirones. Os pés destinaram carreiros para cá e para lá. No desperdício de passos, vagou um lugar no banco da estação, junto à linha, onde pude sentar-me para ler.

Deitei a mão à mochila, inclinei as vistas mas levantei-as de novo, aproximando os olhos do homem sentado no banco ao lado do meu. Com ar plácido e imperturbável, acompanhado por três pessoas, o nonagenário mantinha com elegância a paciência de saber esperar. O homem velho não tinha pressa. Não precisava dela. Era-lhe indiferente. Notou os meus olhos em si. Acenou-me com a cabeça num cumprimento afável. Correspondi com alegria. Afinal, não era todos os dias que se estava perante um dos mais destacados intelectuais portugueses, o filósofo e ensaísta Eduardo Lourenço, autor de mais de quarenta livros, condecorado várias vezes e distinguido com o Prémio Pessoa, o Prémio Camões, entre outros.

O comboio havia de chegar daí a um bocado. Ele levantou-se sem esforço, segurou na sua mala e voltou-se para mim, desejando-me uma boa viagem. No inverno do ano seguinte, a televisão noticiava a sua partida, sem comboio, sem atraso, sem cumprimentos. Eduardo Lourenço pensou, escreveu, viveu, até aos 97 anos.

Esta semana partiu Adriano Moreira. Um homem incompreendido por uns, envenenados pela diferença ideológica; admirado por tantos. Alguém disse que nunca se é apenas uma coisa. Adriano foi muitas coisas. Levou consigo cem anos de vida. Deixou-nos tanto. Para os seus ficam os afetos e as memórias, as memórias de Adriano.

Neste mesmo mês de outubro, a escritora Agustina Bessa-Luís faria cem anos. As suas mãos quebraram aos 96. Há uns dias, Mário Cláudio escreveu assim: “Querida Agustina, nestes dias em que anda a fazer cem anos, são muitos os que me pedem que escreva e fale sobre si. Tenho-lhes dito o que devia, mas também o que não deveria, dizer-lhes. Um grande beijo de parabéns, e olhe que são poucos os que chegam à sua idade, tão vivos, e com tanto futuro pela frente”. Autora de uma fértil obra literária, Agustina viu alguns dos seus romances serem adaptados ao cinema pelo realizador Manoel de Oliveira, seu amigo. Para este, que teve a carreira mais longa da sétima arte, a claquete baixou pela última vez aos 106 anos, sob o desfecho do seu The End.

Podíamos falar de várias outras figuras que pontificaram com a sua longevidade uma vida de exemplos e dedicação. O arquiteto brasileiro Óscar Niemeyer, que desenhou o adeus aos 105 anos, Eunice Munõz, que representou a última cena aos 93, a rainha Isabel II, que representou os (seus) súbditos até aos 96 anos. E muitos mais.

Talvez estes sejam casos excecionais. Quando esta semana conversava com uma pessoa amiga que me comunicou a sua aposentação, notei alguma tristeza e nostalgia. Não pela promissora vida que a espera daqui em diante. Mas pelo desaproveitamento que o Estado fez do seu conhecimento acumulado, da sua experiência, da sua disponibilidade para passar informação aos que lhe sucedem, dos ensinamentos, do testemunho.

Reforcei a convicção de que o Estado (ou seja, nós), afinal, não estamos preparados para respeitar os mais velhos, para acomodarmos a sua longa validade, para planearmos o seu contributo. Isto sim, seria um salto civilizacional. Em vez disso, tratam-nos como um número, carimbam-lhe o papel e enviam-nos para casa.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *