Sentada à mesa do pequeno almoço disse-me que havia vivido a mais bonita história de amor. Só isso justifica que tivesse casado duas vezes com o mesmo homem. A última das quais depois de um encontro em Paris. Ele tratava-a carinhosamente por Peluche, ela chamava-lhe Lucho. Carmen Yáñez falava do seu marido, o enormíssimo escritor e ativista chileno Luis Sepúlveda, falecido em 2020, autor de “O velho que lia romances de amor”, “História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar”, “Patagónia Express”, “Mundo do fim do mundo”, e de muitos, muitos outros.
Conhecemo-nos na Póvoa de Varzim, onde vim para participar no Correntes d’Escritas, o maior festival literário português, que se realiza há vinte e quatro edições, juntando perto de uma centena de escritores de diferentes geografias de línguas hispânicas e portuguesas, de 15 nacionalidades diferentes. Carmen decidiu doar a biblioteca particular de Sepúlveda ao município local. Disse-me que se sentia honrada com isso. E que a Póvoa é um marco indeclinável, onde o marido participou tantas e tantas vezes.
Durante cinco dias, o Correntes d’Escritas aproxima escritores, editores, programadores, agentes e jornalistas. É uma verdadeira plataforma literária. À hora avançada em que escrevo, folheando o dossiê que me foi sido entregue à entrada do evento, deparo-me com o contacto telefónico de cada uma das pessoas ligadas à organização. Esfrego os olhos, que pirilampiscam de incredulidade: numa coluna o nome, na outra o número de telemóvel. Conto quarenta e cinco números. Penso no quanto a Póvoa tem para nos ensinar. E que não é por acaso o seu sucesso arrojado e duradouro.
A folha seguinte lista o horário dos autocarros que gratuitamente levam as pessoas aos espaços onde decorrem as diversas sessões. Abro um envelope e vejo um vale para almoçar livremente num dos treze restaurantes com quem a organização estabeleceu acordo. Para promover um contacto mais genuíno, o jantar foi servido num espaço comum, com mesas redondas para que nos pudéssemos sentar livremente onde quiséssemos. Entre editores concorrentes, jornalistas e escritores, foi nesta circunstância que conheci, por exemplo, a maravilhosa escritora Teolinda Gersão, que gentilmente partilhou comigo algumas particularidades do seu método de escrita. Ou com Afonso Cruz, autor de um dos livros que mais me marcou pela sua qualidade literária e pela criatividade tão bem esculpida. Foram-me apresentados escritores de vários países e ficámos a deambular por entre sonhos, encantos e utopias. A voz narrativa dos livros, na primeira pessoa, os bastidores da escrita, o olhar sobre a torrente da literatura e os seus caminhos que serpenteiam no ocaso de amanhãs incertos.
Neste dia em que escrevo, olho pelo retrovisor do tempo e lembro que, há umas horas, partilhei a mesa com a escritora espanhola Cristina Morales. Ela falou de um dos seus livros, eu falei do meu romance de estreia, “Os segredos de Juvenal Papisco”. Levantei-me quando o meu editor deu por encerrada a sessão. Comecei a arrumar a mochila. Mas havia gente com o livro na mão, interessada em conversar sobre as personagens, sobre os detalhes, sobre a construção e sobre a forma como escrevo: o ritmo, o campo semântico, as imagens escondidas nas palavras. Naquele desajeitamento, não ia preparado para autografar coisa nenhuma. Queria só passar com ligeireza pela porta de saída. Mas as portas, as portas construídas pelo Homem, têm esta característica: servem para sair, mas servem também para entrar.
Lembro-me de ter dito – e não sei por que raio o disse – que uma boa história pode mudar uma vida, é uma das únicas formas pacíficas de mudar o mundo. Perguntar para que serve a arte, a cultura, a escrita, é o mesmo que perguntar para que serve a existência. Se não me perguntarem, eu sei. Se me perguntarem, deixo de saber responder.