“Ambrósio, apetecia-me tomar algo”, diz a senhora no banco de trás, aperaltadamente vestida de amarelo, com chapéu, luvas de pelica e vison ao ombro. O motorista, com simpatia grisalha, responde-lhe “tomei a liberdade de pensar nisso”, fazendo aparecer um prato cheio de Ferreros Rocher. O chocolate que prometia satisfazer os desejos de requinte continua a ser vendido nos supermercados. O requinte vem em caixas de plástico, com códigos de barras e preço marcado. Em nenhuma casa podia faltar tão imprescindível luxo. Mas este não é, para mim, o mais icónico anúncio de natal. Aquele que me fazia esperar pela publicidade televisiva era o de um outro doce: para salvar as miniaturas de chocolate da gulodice do avô, a menina dizia: “Não, não, o coelhinho veio com o Pai Natal e o palhaço no comboio ao circo”. Julgo que este anúncio de Natal terá marcado gerações. O sucesso fez com que estivesse no ar durante 18 anos consecutivos, a partir de 1980, fazendo a delícia de vendas das Fantasias de Natal da Imperial, empresa de fabrico e comercialização de chocolate. Só nunca percebi a razão de haver um coelho no Natal, animal estranhamente associado aos ovos da Páscoa – esse evento de doces, presentes e férias escolares.
Há dias entrou-me pelo telemóvel adentro o anúncio do lançamento de um jogo de guerra. Um jogo de guerra para meninos. O curto vídeo de apresentação não dispensava o som da metralhadora, “rátátátátátátá”. Esperneando no chão, liquidesfazendo-se em vermelhos – não de Natal mas de sangue – os perdedores não sucumbem à perícia do jogador, que festeja em júbilo a mortandade conseguida. O menino é um ás a matar. O menino pequenino precisa muito deste jogo para se manter concentrado e quieto, imbuído do espírito natalício.
O Natal, voragem pagã que entrou com pezinhos de lã pela manjedoura do Natal religioso, converteu-o numa festa de luzes e enfeites, celebração do velho corpulento com longas barbas brancas que passa o ano na Lapónia a construir presentes, ajudado por elfos, para os distribuir nesta noite de dezembro através das chaminés, usando para isso um trenó puxado por renas voadoras. Traz camionetas, consolas, pistas de carros, telemóveis, giftcards e roupa de marca. Sim, o Pai Natal acompanha a tendência da moda e sabe renovar-se todos os anos. Para além de ter acesso privilegiado às notas da escola a fim de saber quem mais merece.
Entrevistado pela jornalista, um miúdo responde se acredita no Pai Natal: “Depende”. Depende do quê, quer saber o microfone: “Se trouxer presentes, acredito; se não trouxer nada, que vá à vida dele”. Já fizeste os teus pedidos? Escreveste uma carta? – volta o microfone a querer saber. “O quê?”
Por mim, volto ao tempo de apanhar musgo e, com bonecos de barro, recrio a noite em que Jesus nasceu – tenha sido em que dia for –, ponho um pequeno espelho redondo a fazer de lago, umas pedras empilhadas a fingir a manjedoura. Apanho no céu uma estrela que possa brilhar o ano inteiro. Tempo de família, de esperança e de recomeços.