Não deve haver coisa mais triste que desexistir na vagarosa correnteza dos dias. Três mulheres ocupavam o último degrau à soleira da casa. Ou eram elas a soleira. Uma soleira chuvosa, sumida, enrugada de desacontecimento. Juntavam-se religiosamente para contar tristezas, desfiando quebrantos, escondendo a meia cara debaixo dos xailes negros, xailes de sofrências, como se fossem as carapaças endurecidas da alma. Moravam junto a uma curva, que lhes encurtava ainda mais a vista. Falavam dos istos e dos aquilos, pecando contra a saudade, escorregando pela preguiça desmemoriada da vida. Não havia pressa, não havia abalo, tudo se quedava num arrefecido sentimento.

Um dia, uma delas fez anos. Quantos, já nem sabia. Mas mais que muitos. Pode um relógio parar, mas o tempo não deixa de passar. Esse seu tempo era de outro tempo, do tempo em que os anos já não importam porque se chega à idade irresolúvel. Eu jogava à bola ali perto, vigiado pelos seus olhos enresinados. Para si, eu não tinha nome. Chamavam-me “ó rapaz”, numa voz pouca e ranfonha. Numa voz tossida, solavancando a última sílaba.

“Ó rapaz”, chamaram-me. Era para que soubesse que uma delas fazia anos. A mulher mostrou-me uma fotografia de quando era nova. Como se aquele fosse o seu atestado. O terço tapava parcialmente o papel, testemunhava que estava a trabalhar numa reza. “Anda, dá-lhe um beijo”. Eu resisti. Fiz que não com a cabeça. “Dá-lhe um beijo”, repetiu a outra mulher com expressão de sentença. Eu fui, a medo. Subi só um degrau. A mulher chamou-me para mais perto e mandou-me dar um beijo à aniversariante. Só que ela tinha pelos no buço e no queixo. Pelos grossos que picavam. Segurou-me com as duas mãos aranhiçadas e puxou-me para si. Olhei-lhe os seus poucos dentes e virei-me como pude para lhe dar apenas a contrária face. Ela repenicou um beijo, apertando-me a cara contra a dela. Muito boquifechado, mordi a boca e fiquei com a bochecha a arder. Passei com as costas da mão no rosto, a limpar o fedor do beijo, os arranhamentos, a secura. Saltei os degraus e afastei-me uns bons passos, vendo a velha juntar os cabelos espalhados para dentro do lenço preto.

Estas velhas, reais, podiam ser um quadro de Paula Rego. A artista deixou-nos anteontem. Mas deixou-se ficar nas memórias que pintava, nas causas, nas enormezas tantas vezes surreais que habitavam no seu mundo de expressões. Deixou na tela a rudeza, o preconceito, as personagens e os bolsos dos aventais cheios de pintainhos. Pintava o que lhe doía. Pintava as metáforas da vida. Deu-nos a ver a beleza na decadência. Como as três velhas que tirei do fundo do meu baú e cuja imagem conservo como um fragmento da sua vida. Por detrás de cada história há sempre outras histórias que o musgo do tempo encobre e que as telas de Paula Rego desvendam. É a sua franqueza que nos conquista. Há sempre uma palavra derradeira quando algo nos impressiona muito.

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