DIÁRIO DE UM LIVRO
Design: @vicentedesign.atelier
#1  VAZIO
#2  O PRIMEIRO RISCO
#3  O COMEÇO DA IDEIA
#4  ESCREVE!
#5 OS DEDOS É QUE ESCREVEM
#6 A CRIAÇÃO
#7 A CONSTRUÇÃO DE UM LIVRO
#8  OUVE-TE
#9 PLANOS FALHADOS
#10 A PESQUISA
#11 TEIAS
#12 NÃO ÉS DEUS
#13  VIGIA
#14 OS PASSOS
#15 BANDA DE EMBALOS
#16 OLHOS TEUS
#17 DANÇA EM VOLTA
#18  COMO EXPLICAR?
#19 SOLIDÃO VICIANTE
#20 RECOMEÇOS
#21  PAPEL FOLHEADO
#22  ROMPE O VENTRE
#23  HIBERNAÇÃO
#24  UM NOME
#25 VEREDA FINAL

#1  VAZIO

«Quem vem lá?», pergunta a folha.
A mão aproxima-se fatalmente de si.
Não responde. Não diz.
Cresce em sombras tortas.
Traça-lhe um risco, um único risco
no meio de si,
assim dois dedos abaixo
da ombreira da página,
assim mais ou menos.
Um risco duvidoso, embora certo, grave,
daqueles que chegam ávidos e frondosos.
Daqueles que vêm todos mamíferos
nos seus fulgores perenes.

#2 O PRIMEIRO RISCO

O risco era o «um».
O um é princípio de tudo.
Tem à sua volta o zero, que é o vazio,
e o dois, que é o plural do um.
Em baixo do um
foi escrita uma coisa parva.
Daquelas coisas que servem apenas
para desarrumar lugares,
deixar as portas abertas e virar para nós
todos os espelhos da casa.

#3 O COMEÇO DA IDEIA

Cacho de tempo pardo.
Vigia teus gestos sonâmbulos.
Saboreia o que ignoras,
a nudez da folha em branco.
Começa em erro,
para que acertes em impetuosa força.
Começa apenas.
Sem inquietação, sem agonia, sem pressa.
Começa como o rumor
Que se aconchega
para respirar em teu peito.
No festim em chamas,
queima a ansiedade de começar.

#4 ESCREVE!

Tua alma febril
percorre as pegadas em ti:
tateia a vida,
a vida entre dois parêntesis.
Debruça-se sobre o alpendre dos olhos.
E diz-te: escreve o livro
que dança contigo.

#5 OS DEDOS É QUE ESCREVEM

Dedos. Dedos inteiros. Dedos fulgentes. Como galhos da mão, de memórias pousadas. Dedos esvoaçantes que vão e vêm. Punhos de asa. Dedos que erram, que apagam e recomeçam. De sílaba em sílaba. Dedos que pensam. Dedos como raízes. Dedos como a sombra da voz. A voz atada ao pensamento. Raia o dia. É o rumor amanhecente do texto que principia nos dedos.

#6 A CRIAÇÃO

Insetos atarefados. Letras em seu movimento de pensar, baratontendo para lá e para cá. Às vezes parecem ignorar-nos. Outras vezes conversam connosco. Deixam-nos galopar em seus pensamentos nus, saltando de folha em folha, tatuando contra o papel a ondulação dos sonhos.

#7 A CONSTRUÇÃO DE UM LIVRO

Um livro não nasce livro. Ele forma-se como qualquer outro ser. Primeiro uma letra. Depois uma palavra. Forma-se uma linha. Depois muitas linhas fazem um parágrafo. A seguir uma folha. Muitas folhas fazem um capítulo. E depois ele fica escrito. Como uma pedra que rola até ao seu lugar derradeiro.

#8 OUVE-TE

Voz acesa.
Voz em chamas.
Crepitantes silêncios,
fagulhas inebriadas.
Vogais dispersas
nos galhos de outono.
Ecoam nos rochedos do peito
os sons em que te ouves.

#9 PLANOS FALHADOS

Torceu-se o destino. Fico a pensar que, às vezes, fazemos planos e tudo sai ao contrário. As personagens, que são também as pessoas da nossa vida, existem para além do papel que lhes destinamos; os lugares começam a pedir outro clima, e aromas, e texturas, e sons. E sempre que achamos ter encontrado uma resposta, vem a noite, caprichosa, e volta a mudar a pergunta. A noite solta sempre os uivos dos cães.

Descobrimos que a história pode mudar assim que a começamos a escrever.

#10 A PESQUISA

Procura.
Acha-te nos passos perdidos.
Nesse chão em que te amacias
em alfombras de espanto.
Nos dedos debruçados
sobre as lombadas puídas
colhe significados.
Os teus significados.
Perde-te sem medo
Para que aches teu segredo.

#11 TEIAS

Bichos comedouros
tragando caminhos
fazendo teias
sugando-te as veias. Rémoras ventosas
De dor atormentadas
Atiram-se às rochas
como a espuma mordaz
quando a onda se desfaz.

Se te faltarem os nomes
Das abjetas figuras
Manda sentar junto a ti
os que te querem mal.
Eles são o teu sal.

#12 NÃO ÉS DEUS

Não és Deus.
Como te atreves
a fazer nascer heróis e vilões?
A destinar-lhes
fisionomia,
alma,
sina.
Com que sustento,
com que vigor?
Não és Deus.
Como te atreves?

#13 VIGIA

Vigia os teus pensamentos.
Neles fazes o teu mundo.

#14 OS PASSOS

Se acordado sonhas
a vida das lonjuras,
e se teus passos
são outros passos,
se teus pés não calcam
mas dançam.

Qualquer luz
tomada por caminho
no sonho
em bolsos de utopia
é direção de aventura,
A medida sem largura.

#15 BANDA DE EMBALOS

Os carros passam
Buzinam gritam
tremores mecânicos,
ruídos sem fé.
As ruas vergadas
desacostumadas do silêncio
já não escutam.
Gritam fumos
por onde escapam seus canos.

Mas de repente,
muito de repente,
é em teus delírios sonhantes
que nascem lugares,
só quase lugares.
Lugares bonitos
como o rumor de um sopro.

E eis que nessa banda de embalos te ouves por dentro
e apesar de nubladas as ruas
declaras vivas as estrelas.

#16 OLHOS TEUS

Se é real
o outro em que te vês,
e se nele a tua vida
corre em perspetiva,
seus apuros
são os teus.
Seus olhos são teus olhos.
Seus senãos são os teus também.
Não há poréns nem acasos
em que nos outros te não vejas.

#17 DANÇA EM VOLTA

Vasto e redondo
tempo em volta
de si mesmo.
Recomeça, gira,
como primaveras
enrolando-se nas outras estações.
Não são trepadeiras,
não são galhos
em direção ao céu.
São caminhos
que regressam.
Sono e vigília,
dança em volta
no pêndulo da vida,
errando para recomeçar.

#18 COMO EXPLICAR?

Como explicar a cor
a um cego de nascença?
Que sons trespassam
a imaginação do surdo?
Como desvendar o amargo
sem dar a provar?
Como transmitir o amor
a quem nunca o sentiu?
Que livro em que
com palavras já escritas
irradia o sonho
do concreto
invisível?

#19 SOLIDÃO VICIANTE

Solidão viciante
liberdade de querer
estar só.
Profundo fundo
onde as sementes
brotam nos rumores
da paz.

#20 RECOMEÇOS

Eis o fim.
A luz do fim,
brilhando como brilha a luz coada.
A luz dos começos, dos prelúdios.
A luz da aurora.
Eis o fim. A luz do fim.
Dos recomeços, dos inícios.
Olhemo-la
sem drama, sem medo.
Daremos novos passos
de felicidade
como se os dessemos
pela primeira vez.
E nesses passos,
nesse modo de viajar,
havemos de chegar
de novo ao fim,
celebrando o outro
início que chegará.

#21 PAPEL FOLHEADO

Para me percorrer em ti
talhei todas as palavras.
De mãos abertas,
para que o sempre
não pudesse faltar-nos.

Desci em teu peito,
folheei-te na tela dos olhos.
Olhos que tateiam,
Olhos que ouvem,
que sentem,
que se julgam donos
sem nada terem.

Desci mais ainda,
antes que fosse noite
e a luz esguia
feita de papel
nos adormecesse
nos acasos do tempo.

#22 ROMPE O VENTRE

Prossegue, diz a voz vinda do leste
com saudades de nascer.
Persevera, engole o tempo
em gomos de uma só vida.

Rompe o ventre do silêncio,
quebra o espelho,
dá-te em luz
nas páginas lascadas.

Resiste à voz aguda
que assoma grave sobre ti.
Nos súbitos reflexos
talvez enfim te reconheças.

#23 HIBERNAÇÃO

Havia momentos,
ténues e vagos momentos,
em que nos escondíamos do tempo.
Falávamos uma língua só nossa,
com palavras delicadas,
assim só palavrinhas
muito enternecedoras
como se fossem tricotadas
pelos sonos do outono.
A luz adormecida
aconchegava-se no corpo
do mundo.
As árvores pareciam sorrir.
E o crepúsculo silencioso
desaguava nas flores
que em nós havia.

#24 UM NOME

Um dia chega um amigo
e diz: que nome lhe vais pôr?
Digo que não sei.
Começo a pensar nisso.
Não durmo.
Escolho um nome.
Penso que esse nome
não é perfeito.
Não durmo.
Quero um nome
pequeno que seja
próprio de um nome grande.

#25 VEREDA FINAL

Creio que foi a tua pele
no afago da minha pele
que assomou dentro de mim.
O tempo corre,
os dias passam e tu neles.
Não cessas, não acabas,
choras em folhas encharcadas.

A vida dentro da vida
em dividida amargura.
A hora bate e tu cintilas.
Meus pés já longe
veem-te demorar
em mãos inertes,
desafeiçoadas, indolentes.
Meus pés em amadurecidas
melancolias
calcando a estrada.

Para cá e para lá,
Há mãos e dedos
que te agarram,
que te amam,
que te deixam.
Sei. Sei.
Se a nossa pele
semeou afagos,
foi o acaso que nos juntou
na mesma vida.
Na vereda torta,
irradiada na luz que acendes,
iluminas teu chão,
ateias o meu caminho.